Bilinguismo e atraso no desenvolvimento da fala
Bilinguismo e atraso no desenvolvimento da fala

Recentemente conheci uma brasileira residente aqui na Inglaterra que tem um filho de três anos com quem ela fala somente em inglês. Quando lhe perguntei por que não falava português com a criança sua resposta foi: “Porque ele estava ‘travado’, não falava, então a professora do jardim nos recomendou que falássemos somente inglês com ele em casa.”

Essa brasileira não é um caso isolado. Muitos pais acreditam que crianças expostas a duas ou mais línguas tendem a ter um atraso no desenvolvimento da linguagem e ao menor sinal de lentidão ficam inseguros quanto a continuar ou não proporcionando uma educação bilíngue aos filhos.
 
 
 
 
 
  
Além disso, quando crianças que estão crescendo num ambiente bilíngue demonstram algum tipo de atraso ou distúrbio da fala, professores e até mesmo profissionais de saúde muitas vezes assumem que o problema é causado pelo bilinguismo e recomendam que a família passe a falar com a criança apenas na língua do país de residência.
 

Mas afinal, bilinguismo causa ou não atraso no desenvolvimento da fala?
 
Pesquisas
Pesquisas recentes são unânimes em concluir que crianças bilíngues começam a falar na mesma época que as monolíngues. Algumas crianças podem fugir um pouco da média, começando a falar um pouco antes ou um pouco depois das demais, independentemente do número de línguas a que estão expostas. Em suma, bilinguismo não causa atraso no desenvolvimento da fala nem protege contra atraso – simplesmente parece não fazer nenhuma diferença nesse sentido.  
 
Isso quer dizer que crianças bilíngues podem ter exatamente os mesmos distúrbios da fala que as monolíngues, portanto qualquer atraso significativo não deve ser tomado como normal em consequência do ambiente bilíngue – ele provavelmente é causado por algum outro fator e deve ser investigado. É muito importante que distúrbios sejam diagnosticados cedo, pois isso facilita muito a resolução dos problemas. 
 
E se algum profissional sugerir que você pare de falar sua língua materna com seu filho, não tenha medo de questionar a recomendação. Pergunte o por quê da medida, sua base científica (existe alguma evidência científica de que o monolinguismo vai ter um impacto positivo no tratamento do seu filho?) e, se necessário, procure uma segunda opinião, de preferência de um profissional que tenha experiência em bilinguismo. Na grande maioria dos casos a conversão ao monolinguismo não vai ter impacto no ritmo de desenvolvimento da linguagem, e em certas situações pode até gerar problemas emocionais.
 
 
Quando procurar ajuda
Como menciono acima, bilinguismo em si não causa atraso na fala, mas outros fatores podem causar, e quanto mais cedo um diagnóstico é feito, melhores são as perspectivas de solução do problema. Mas quando os pais devem procurar um especialista? O que exatamente constitui um ‘atraso’ no desenvolvimento da fala? Até que ponto uma demora no desenvolvimento da fala pode ser considerada normal?
 
Durante a aquisição da linguagem as crianças passam por fases distintas, que ocorrem dentro de períodos padrão. Segundo a equipe de fonoaudiologia da Clínica do Parque, de São Paulo, a aquisição da linguagem normalmente ocorre no seguinte ritmo:
 
De 0 a 6 meses a criança:
  • Produz ruídos, gritos e choro
  • Brinca com os barulhos que produz
  • Emite sons nos momentos em que está acordada e tranquila (por exemplo “aaa”, “uuu”)
  • Imita a entonação do adulto (jogo vocal)
De 6 a 12 meses:
  • Aumenta a quantidade de sons produzidos
  • Surge o balbucio: “baba”, “ma-ma-ma”
  • Torna-se possível uma espécie de diálogo
  • Atende pedidos simples, como mandar beijo, bater palminhas, dizer tchau.
De 1 a 2 anos:
  • Sabe dizer o próprio nome
  • Fase do grande “boom” da linguagem, início das primeiras palavras
  • Diz frases do tipo “nenê dormir”
  • Ao final dessa fase já é capaz de construir frases como “quero água”, “quero comer”
De 2 a 3 anos:
  • Uso de gestos acompanhados de fala (aponta e diz: “que é isto?”)
  • Diz frases simples como  “a bola caiu”
  • Começa a fase do “por que”, que exige grande paciência dos pais
  • Compreende histórias e atende ordens mais complexas, como feche a porta e apague a luz
  • Surgem as noções temporais (agora/depois, primeiro/último) e de quantidade (um/mais de um)
De 3 a 4 anos:
  • A criança já adquiriu a maioria dos sons, sendo capaz de produzi-los corretamente
  • É capaz de organizar o que fala e sequencializar fatos (com início, meio e fim)
  • Já faz uso de pronomes (eu, você, meu), preposições (de, por, para), plural e passado
 
Embora existam esses padrões, características individuais da criança e estímulos externos podem influenciar muito o ritmo de desenvolvimento da fala.  Há grandes variações. Uma autora conta que sua filha, educada em três idiomas, falava três palavras aos dois anos de idade: duas numa língua e uma em outra. Hoje a menina tem 21 anos e fala fluentemente os três idiomas. Nossa filha, por outro lado, igualmente educada em três idiomas, já falava uma dezena de palavras no seu primeiro aniversário.
 
As primeiras palavras geralmente são ditas pelo bebê entre os 9 meses e os três anos de idade – um período muito extenso, mas tanto a criança que diz a primeira palavra aos 9 meses quanto aquela que só começa a falar aos três anos pode estar dentro da normalidade. Algumas mães vão ficar aliviadas em saber que Albert Einstein só começou a falar aos três anos de idade – seus pais até o levaram a um especialista para investigar o problema.
 
No entanto, os pais devem seguir seus instintos e procurar ajuda médica tão logo desconfiem que a criança possa ter um problema. Alguns especialistas recomendam que se a criança não fala nenhuma palavra aos 18 meses, ou se os pais  não conseguem entender o que ela diz, o problema deve ser discutido com o pediatra, que poderá fazer uma avaliação individualizada, de acordo com as características específicas da criança.  Especialistas também dizem que se aostrês anos a criança ainda come consoantes ou substitui um som ou uma sílaba por outra, os pais devem considerar uma avaliação fonoaudiológica.
 
 
O fato é que apenas contar o número de palavras que uma criança fala não é suficiente para determinar se o seu desenvolvimento está sendo normal. Ela pode não falar muito, mas se entende o que é dito a ela, o sinal é positivo. No entanto, se a criança não reage a estímulos verbais e parece não entender linguagem, o problema deve ser investigado o mais cedo possível.
 
O atraso da fala pode ter origem funcional, quando não há nenhum problema físico e a demora se deve à imaturidade da criança, ou orgânica, quando a causa está em algum problema fisiológico ou psicológico. As causas mais comuns de atraso no desenvolvimento linguístico são as seguintes.
 
Problemas de audição
É muito comum que atrasos no desenvolvimento da fala sejam consequência de problemas auditivos – a criança precisa ouvir para poder repetir os sons e associá-los aos objetos.  A audição da criança geralmente é testada no hospital logo após o nascimento, mas problemas podem aparecer mais tarde. A simples observação da criança vai dar pistas quanto a possíveis problemas: ela reage a barulhos altos, olha na sua direção quando você fala com ela? Bebês com problemas de audição podem parar de balbuciar por volta dos seis meses. Se os pais suspeitarem que há um problema auditivo, podem submeter a criança a exames que captam perdas de audição progressivas ou adquiridas. Quanto mais cedo melhor.
 
Problemas no desenvolvimento em geral
Descartada a possibilidade de uma deficiência auditiva, deve-se considerar o desenvolvimento da criança em outras áreas, pois o atraso da fala pode ser consequência de um atraso mais amplo no desenvolvimento. Por exemplo, a criança entende quando você fala com ela, tem habilidades visuais, segue comandos simples, tem boa coordenação motora? Aqui também, a criança pode ser submetida a testes específicos para determinar se o desenvolvimento como um todo está normal.

Transtornos neurológicos
Problemas da fala podem ser indício de transtornos neurológicos, incluindo as várias formas de autismo. Nem todas as crianças com problemas neurológicos apresentam atraso no desenvolvimento da fala, mas o atraso pode ser um sintoma precoce de algum problema nessa área. 

Problemas no desenvolvimento emocional ou social
Um lar caótico ou em que os pais são muito exigentes, a falta de interação entre o adulto e a criança e muitos outros fatores podem causar problemas emocionais e sociais que também podem afetar o ritmo do desenvolvimento da fala. A família pode precisar da ajuda de um psicólogo para superar o problema.

Falta de estímulo
O desenvolvimento da linguagem exige estímulo. Se a criança não apresenta problemas de audição e do desenvolvimento em geral, os pais devem considerar se ela tem tido os estímulos necessários para falar. Para estimular as crianças é importante falar com elas desde cedo, usar um vocabulário rico, ler, cantar, brincar. Deve-se também dar oportunidades para a criança falar. Um especialista pode dar orientações específicas para os pais sobre como estimular a criança de maneira a facilitar o desenvolvimento linguístico e superar problemas causados pela falta de estímulo anterior.
 
Conclusão
 
  • Pesquisas confirmam que crianças bilíngues não demoram mais para começar a falar do que crianças monolíngues.
  • Crianças bilíngues se desenvolvem em ritmos diferentes, da mesma forma que as monolíngues, ou seja, algumas vão falar cedo, outras vão falar mais tarde.
  • Uma criança bilíngue com problemas de desenvolvimeno da linguagem deve ser tratada exatamente da mesma maneira que uma monolíngue.
  • O número de línguas a que uma criança está exposta normalmente não influencia o desenvolvimento da fala, portanto, se um professor ou ‘especialista’ recomendar que você deixe de expor seu filho a mais de um idioma, questione e procure uma segunda opinião, preferencialmente de um profissional com experiência em bilinguismo.